Onde moram os livros, Crescem Pessoas

Uma família com 4 filhos, entre 12 e 7 anos, morando num pequeno apartamento de dois quartos em uma grande cidade. Não moravam em um bairro decadente, pelo contrário, ali se respirava vida e era cheio de contrastes, multidão e barulho do já caótico transito. Espaços de verdade, somente como opção a rua e a praia. Claro que os conflitos entre irmãos seriam inevitáveis. O que seria possível fazer com eles?

Copacabana já era um bairro super povoado. Prédios Colados um no outro, sem espaços entre eles para o sol entrar ou o vento correr solto. Maioria construída na década de 30/40, com todo tipo de comércio, bancos, consultórios médicos e um monte de gente andando pelas ruas. Lugar disputado para idoso morar. Acabava sendo um calor danado dentro do apartamento. O que fazer para distrair a garotada?

Tivemos uma fase onde depois do jantar, saíamos à noite e íamos andando uns dois quarteirões até uma pequena livraria do bairro. Não me lembro de quando ou como surgiu essa solução, mas durante um bom tempo, ela resolveu a delicada questão do stress familiar. Foi aplicada instintivamente pelo meu pai. Sem muitos recursos na época, sem TV ou telas sofisticadas, foi a livraria da esquina que suavizou nossos conflitos e abasteceu nossa imaginação e curiosidade.

Era pequena, porém com suas prateleiras e seus balcões abarrotados de livros, o que era uma visão que fazia os olhos brilharem com o tanto de imagens e cores, além do cheiro de diferentes papéis e um monte de histórias para serem desvendadas.  Tornou-se uma espaço de tréguas, quase um santuário, onde a fantasia e as nuances da vida eram aos poucos descobertas sem bate-bocas desnecessários.

Meu pai chegava na livraria comigo e meus dois irmãos e o que no começo era só uma folheada e uma olhadinha nos livros, acabou se transformando numa “leiturinha” de vários livros e revistas. E com isso o tempo passava sem a gente perceber, se tornando um prazeroso hábito semanal. Lembro que gostava de ler “As aventuras de TimTim” e também de “Obelix o Gaulês”. Eram vários volumes de revistas ilustradas  e que precisavam de alguns dias para cada história ser finalizada .

Sabíamos como nos portar, pois já havíamos decorado as repetidas e antecipadas “regras de conduta”. Não se podia abrir muito os livros para não marcar, tinha que ter cuidado para não amassar e nem deixar sujar de qualquer coisa o que estivéssemos lendo. Manter o silêncio e respeitar o espaço dos outros fazia parte do primeiro estágio de aprendizado.

Com treze anos, frequentei uma biblioteca mais encorpada. Era numa escola de Inglês, também perto de casa, e se chamava IBEU na época. Uma biblioteca bem completa, com várias revistas americana, enciclopédias e livros diversos. Era um local onde se perdia a noção do tempo depois de assistir a curta aula. Sem perceber, ali foi o segundo estágio da formação da minha amizade eterna com os livros.

Abrir esses espaços, abrir portas e janelas ao mundo para que entre mais luz, mais ar novo e mais sabedoria cabe a cada um de nós.  É algo instigante e desafiador estar entre ambientes que nos remetem a centenas de idéias, conceitos, realizações e histórias de vida.  Sinto como se todo o conhecimento do mundo pode ser acessível, simplesmente ao alcance das  mãos e de nossa vontade. Sinto que com isto, eu serei melhor, mais conhecedor e sabedor sobre a vida e sobre eu mesmo.

Imagina o tanto de pessoas que comigo dividem este mesmo sentimento. Quantas bibliotecas, quantos sebos e livrarias existem pelo mundo? Quantos estilos de escrita? Quantos idiomas existem e que precisarei aprender para me expressar?        E as particularidades e sutilezas que cada cultura é capaz de nos mostrar?

Como será que falam em outras culturas?   “Minha amada, você é tão linda!”

Tradução:

Em nepalês:” Mērō māyā, timī dhērai sundara chau”

Em hebraico: “Ahuvati, et kel kech yefa”

Em russo:” Moya lyubov’, ty tak prekrasna”

Será que significam a mesma coisa que eu expressei em português? E quanto ao hábito generalizado do uso de celular ou da linguagem curta dos vídeos? Quem consegue ter atenção e tranquilidade suficientes para acompanhar os raciocínios e as tramas dos livros? Ler e absorver o conhecimento exige uma postura interior. Um encontro entre nós e as idéias daquele escreveu, organizou o pensamento e os sentimentos e se propôs a repassar isso a outros. Pode ser considerado o tal trabalho em conjunto de formigas, pois as conquistas e o esforço de cada um segue se somando as obras de outros, montando o grande quebra cabeça do conhecimento, da comunidade, de um povo, de um momento da civilização.

Mas desde sempre, isto é ou não é do interesse daqueles que dominam países ou o planeta?  E todas as atrocidades cometidas contra o amplo conhecimento?  Bibliotecas milenares foram “desaparecidas” ou queimadas, estudiosos e o saber foram aniquilados e continuamos a presenciar estas mesmas barbaridades acontecendo da mesma forma em nossa época. Só que agora eles também deletam e suspendem pessoas em redes sociais, bloqueiam vídeo em plataformas de divulgação e desmonetizam qualquer um que divulgue idéias que não estejam alinhadas com o pensamento vigente ou que não cumpram “as regras da comunidade”, sabendo-se lá quais regram estas seriam.

Alguém ou grupos restritos tem interesse em que não saibamos de coisas que estão além do saber comum ou que são divulgadas na grande mídia. Isso acontece em todas as áreas do conhecimento. Da comida que temos acesso, do tipo de roupa que usamos, das vontades que nos vendem e que impulsionam a tal da máquina social. Das maneiras que nos relacionamos à compreensão dos movimentos sociais, tudo nos é limitado e limitante.

Bibliotecas não são apenas depósitos de livros antigos ou museus de memórias. São verdadeiros portais. Mapas silenciosos que nos guiam para fora de nossa cotidiana realidade, e no fim, para dentro de nós mesmos. Cada assunto tratado, vira uma nova bússola. Cada nova leitura, transforma-se em uma ponte entre o que já foi visto e o que ainda não foi imaginado.

No final das contas, a necessidade de me conhecer aliada a vontade de ser cada vez melhor é que me leva a lugares assim. Lugares onde o tempo é suspenso, onde acontecem os pequenos e particulares insights sobre a nossa existência. Onde o menino tímido se tornar rei, onde a mulher sem direção se lembra de que ainda pode sonhar e onde os idosos reencontram a juventude e o vigor das palavras já usadas e abusadas ao longo do tempo.

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